domingo, 22 de abril de 2012

Trapaças das lembranças II – O esquecimento




Tive um corrimento escrotal. Ao ver, pela minha janela, que chovia, desejei ser poeta com tantas palavras e foi inevitável: escorreu pele abaixo e corpo acima um líquido de esquizofrenia amorosa.

Eu olhava para cada gota daquela garoa e tentava lembrar-me quando fui chamado pelo nome, pela primeira vez. Mas só consegui esticar o pensamento até um apelido pálido, rochoso e desnecessário: “meu anjo”. Ah, isso soa tão estranho para alguém que não se lembra do próprio nome.

Descobri, então, que a garoa é de uma mente tão sarcástica e sádica, que enfia letras separadas na cabeça da gente e nos contorce ao ponto de termos escorrimentos poéticos. Não gosto mais da garoa, prefiro a chuva!

Os poetas são feitos de continuidade e eu me recusei a ser contínuo – ou fui obrigado? Não me lembro. Fui recolher as roupas do varal, acender a claridade da noite e pensei na pausa. Definitivamente, não tenho nenhuma qualidade para ser poeta.

Gosto da fala pausada, das frases sem fim, das palavras cortadas. Até minha memória é cheia de lacunas e qualquer exercício que faço para relembrar só consigo saber que esqueci... Lembrei-me: aquela noite, aquela música... Qual o nome dela mesmo?! Ah, você sabe.

Toda música ajuda na memória, e lembrar dói. Deveria ser proibido acessar lembranças e ser poeta. Os dois nos alegram pela dor.



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