terça-feira, 25 de setembro de 2012

A Certidão do último Encontro




Chegou mais cedo que de costume. Fitou seus olhos arredondados, cor de lodo, no pote de doce de pêssegos, que estavam em cima da geladeira, Caminhou até a cama e se desfez do fardo.

Olhou atentamente para as paredes de cores iguais, com uma única marca, demarcando o território ilusório dos desejos incomuns. Sentou-se à beira da cama, no chão, sacou de dentro da bolsa o diagnóstico. Não teve coragem abrir o envelope com a notícia já sabida.

Chovia lá fora. Chovia também lá dentro e, por fora e por dentro, as paredes escorria água cristalina feito numa bica. Levantou-se lentamente e pegou em seus guardados a certidão, que dizia mais ou menos assim:

“Aos nove dias, do mês de janeiro, do ano de dois mil e doze, da Era de Nosso Senhor Jesus Cristo, atestou-se o falecimento de...

[uma pausa e um desaguar]

...o falecimento de: Amor de Inocêncio Puro dos Anjos. Óbito ocorrido às 22h36.
Causa do falecimento: falência múltipla da vida e dos tecidos de desejos, acarretada por overdose de erros

Declarou o óbito: Eu de Desejos Inocêncio Puro dos Anjos e pela Dra.: Vida De Fato Real”

[...] Teceu lentamente todas as palavras ali contidas e criou coragem para ler novamente o diagnóstico:

“Laudo: Mal de Amor Crônico – Observações: Paciente com riscos de desenvolver apatia ao amor em excesso”.

[...] E veio a decisão. Ouviu a música preferida, arrumou todas as coisas. Deixou, em ordem, os livros, os textos e os poemas ainda não escritos. Soluçou com o frio que subia das pernas à alma.

Acalentou o desespero e arrumou as malas para não levar nada... Esperou até a lua ir se recolhendo e o sol brilhar, fechou lentamente os olhos e voou céu abaixo.


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